Michael Cunningham: “As mulheres ainda têm de fazer tudo”

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Michael Cunningham [Fotografia: Orlando Almeida / Global Imagens] (Orlando Almeida / Global Imagens)

No novo romance Dia, Michael Cunningham, autor norte-americano de obras como As Horas e Uma Casa no Fim do Mundo ou Dias Exemplares, fala de uma família em conflitos quase surdos que passa a ser obrigada a reconhecer-se diariamente em tempo de confinamento devido à covid-19. Os dilemas interiores, os conflitos e as relações amorosas e familiares que se reescreveram com o convívio obrigatório sob o teto do medo e da dúvida.

Um livro que coloca a protagonista a olhar frequentemente para si e para a família como ‘branca’. “Queria falar do privilégio que é ter casa, trabalho, família e dinheiro em tempo de pandemia e ainda assim não se estar preenchida, de procurar mais”, revela Cunningham sobre o livro onde nunca menciona a palavra covid-19. E porquê? “Prefiro referir-me ao do que nunca se fala, que parece ser do submundo. Num filme de terror, o facto de existir algo escondido na cave torna-o mais assustador do que quando sobe as escadas. Queria a ideia do monstro, dar mais ênfase ao medo, à dúvida. Também imaginei que nunca ninguém que fosse ler o livro não saberia de que se tratava da pandemia”, refere na entrevista.

Uma obra que retrata a evolução das relações familiares e dos casamentos porque, crê Cunningham. “as pessoas estavam bem, mas também não tão bem. A pandemia trouxe a ideia das relações ‘ok’, o monstro na cave obrigou as pessoas a estarem tempo suficiente fechadas para descobrirem que as relações podiam prosseguir ou tinham de ser terminadas”.

“As mulheres estão ainda numa situação diferente dos homens”

O galardoado escritor diz que as mulheres que “não lhe suscitam interesse são aquelas que vivem vidas de mulheres de forma inquestionável”. Por isso, as suas personagens femininas são feitas de outra massa: “Estou simplesmente mais interessado nas que têm um certo poder e que não estão satisfeitas com pequenas coisas e detalhes que não lhes são oferecidos, estão frequentemente frustradas”. “Estou interessado em conflitos com os quais elas são confrontadas”, acrescenta.

Sobre a realidade, Cunningham não duvida que as mulheres ainda não sentem, nem vivem o mundo com as mesmas oportunidades que os homens. “Creio que elas estão ainda numa situação diferente. Ainda não está feito, as mulheres ainda têm de fazer tudo, desde lutar pela igualdade salarial em trabalhos iguais até ao facto de, se têm filhos, é-lhes esperado que tenham uma profissão e que tomem conta das crianças. As mulheres ainda não sentem a mesma experiência que os homens a viverem o mundo”, reitera.

Numa altura em que cresce a extrema-direita, realidade com a qual o romancista está mesmo muito preocupado, dá o exemplo da luta recente das mulheres para a conquista comum de direitos “Creio que qualquer movimento pela mudança social poderá provavelmente tornar-se extremo por forma a que seja recentrado depois. Creio que este movimento das mulheres é um bom exemplo. Possivelmente, poderemos ter ido um pouco longe, mas é uma luta absolutamente real, válida e podemos conquistar terreno para uma genuína mudança social que envolva o conhecimento dos direitos que as mulheres têm de não serem regularmente ‘lixadas’ pelos homens. É a mesma coisa para os direitos dos homossexuais e para todos os outros. Mas é preciso realmente puxar para conseguir conquistar terreno na consciência comum”.